Maria José Nóbrega
Realizada em: 12/9/2011
Atuação: Assessora da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo
Obras: NÓBREGA, Maria José; PAMPLONA, Rosane. Enrosca ou desenrosca? São Paulo: Editora Moderna, 2011; NÓBREGA, Maria José; PAMPLONA, Rosane. Salada Saladinha: parlendas. São Paulo: Editora Moderna, 2009; NÓBREGA, Maria José; PAMPLONA, Rosane (orgs). Diga um verso bem bonito! Trovas. São Paulo: Editora Moderna, 2005.
Salto – No programa 1, falamos sobre a implementação da Lei n. 12.244/2010, que determina a universalização das bibliotecas nas instituições de ensino do país. O que mais a lei prevê?
Maria José – Ela prevê um tempo de implementação de, aproximadamente, 10 anos, exatamente para que os municípios possam organizar os espaços, eventualmente oferecer a formação necessária para as pessoas que vão atender a essas crianças, organizar os acervos... Enfim, 10 anos para que as crianças possam ter, de fato, acesso aos livros.
Salto – De acordo com a pesquisa Retratos da leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro, há uma enorme parcela da população que não tem acesso aos materiais de leitura. O que a biblioteca escolar pode representar para essas pessoas?
Maria José – Devemos considerar as profundas desigualdades sociais, que excluem boa parte da população dos bens culturais, e não ter acesso ao livro é um dos aspectos dessa exclusão. Então, uma das coisas que considero formidável nessa lei é a possibilidade de assegurar equidade, quer dizer, a possibilidade de que crianças que, de outra forma, não teriam acesso ao livro, poderem ter este acesso. Claro que isso se estende aos jovens, aos adultos que estão na EJA. Esta aproximação dos bens culturais, muitas vezes, não faz parte da vida das pessoas, que estão excluídas de outras coisas também. Este é um aspecto muito interessante, mas não é só isso. É também fundamental esta aproximação dos agentes mediadores de leitura, o professor e o bibliotecário, no sentido de que promovam de fato a leitura e que os livros circulem.
Salto – Estes títulos da biblioteca escolar podem estar acessíveis à comunidade em que ela está inserida? De que maneira?
Maria José – O texto da lei em relação a isso não é bastante claro. Eu vou falar um pouco do que eu considero desejável. Exatamente quando estamos discutindo que esta biblioteca, muitas vezes, pode ser o único acesso que a comunidade toda tem aos livros, ou a outros suportes escritos, penso que é extremamente interessante que a escola se organize para atender à comunidade. Porque, de fato, este aparelho pode produzir um impacto nesse espaço e nesse lugar. Claro que, para isso, o acervo deve ser um acervo razoável, para assegurar tanto o empréstimo para os estudantes da própria escola, como também para outros interessados. Mas também tem uma questão fundamental aí: que esse acervo seja de algum modo tratado. Quer dizer, é preciso saber quais são os títulos que há na biblioteca, para poder organizar o empréstimo e fazer, de certo modo, a circulação das publicações. Esta sensibilidade para abrir para a comunidade faz muita diferença nas relações família/escola. E pode ampliar os níveis de letramento, não só da criança, mas também da família. Há algumas escolas que têm resolvido isso de jeitos muito interessantes. Por exemplo: no caso de crianças pequenas, que estão se alfabetizando, algumas mães têm níveis de letramento frágeis, por uma escolaridade, às vezes, não muito longa. É comum, em algumas escolas, a mãe ir com a criança escolher um livro que ela também dê conta de ler. Então, em certo sentido, a escola está fazendo um duplo letramento: o da criança e o da mãe. Uma outra situação: algumas escolas atendem apenas aos estudantes do Ensino Fundamental, e quando eles mudam para escolas de Ensino Médio, muitas vezes não encontram na biblioteca da escola os títulos que precisam, ou até mesmo a biblioteca é um espaço ausente nesta escola para onde eles vão. Dessa forma, muitos desses alunos voltam como ex-alunos e vão tentar, de algum modo, resolver as suas questões escolares. Outros voltam exatamente porque se apaixonaram pela leitura literária, e a sensibilidade dos agentes, no sentido de acolher esses jovens, é muito importante. Mas eu insisto que, para isso, é preciso ter minimamente uma organização. E não deve ser uma organização para emperrar, mas uma organização para fazer circular.
Salto – Como a biblioteca escolar pode ser também um espaço cultural a serviço da comunidade?
Maria José – Normalmente, imaginamos a biblioteca e os livros. Mas, em torno dos livros, temos atividades sociais das mais variadas. Podemos ter os poemas, os saraus, o cordel, enfim, este país é tão imenso e com tanta vocação cultural diferenciada, que é preciso estar atento à produção que é feita na própria comunidade. É muito interessante tornar esse espaço da escola um espaço de diálogo com esta cultura que circula fora da escola e com a cultura formalizada nos livros. Outro aspecto relevante são os contos, as contações de histórias, podemos ter todo um patrimônio oral de histórias que circulam e que podem estar ali a serviço da escola. Quer dizer, este espaço pode ser um espaço de diálogo. Ao mesmo tempo em que ele reúne esses títulos todos, ele pode também ser sensível à cultura local e à vocação local. Esta é a possibilidade de dar vivacidade, riqueza, singularidade para este espaço inserido em cada escola, em cada lugar: estar atento à vocação de cada região.
Salto – Para uma biblioteca funcionar de maneira eficaz, além da circulação dos livros, é preciso ainda uma organização adequada do acervo. Este trabalho deve ser feito por um profissional com formação específica. Por quê?
Maria José – Se formos pensar em todos estes aspectos que estamos conversando, a organização é fundamental. Nós temos hoje bibliotecas escolares com acervos maravilhosos, mas não tratados. Isso significa que fica muito difícil localizar um título, por exemplo. Às vezes, estes arranjos, ou seja, a localização dos livros, ficam na mão de um outro profissional, que cuida deste espaço, então ele sabe onde localizá-los. Mas isso não ajuda de fato a autonomia, a aprender como se comportar no espaço da biblioteca. Eu penso que um profissional, e aí estou falando do bibliotecário, é certamente alguém que sabe fazer isso funcionar, do ponto de vista de como tratar esses livros, e facilitar, exatamente, na hora de os localizar, porque isso vai permitir mais mobilidade. O que temos deste autor? O que temos a respeito deste tema? O que temos deste gênero? Por outro lado, sabemos que para cada biblioteca escolar ter um bibliotecário, ainda não há profissionais disponíveis. Acho que vão ter que ser pensadas algumas alternativas, e o modelo de funcionamento de algumas bibliotecas comunitárias pode ajudar a pensar isso. Quer dizer, é necessário ter um profissional que ajude a organizar esse material. Mas não é só organização. É também a circulação, e também a promoção, que é um outro aspecto importante. Porque não adianta ter todo o acervo tratado se resolvermos tomar conta deste espaço e impedir que as pessoas, de algum modo, façam uso dos livros. Um livro ganha vida quando é lido. E aí temos outro aspecto fundamental da formação deste profissional, que é ele atuar efetivamente como mediador de leitura. Alguém que aproxima o livro dos leitores pouco experientes, ou que estão começando a entrar neste universo da cultura escrita.
Salto – Com o avanço das novas tecnologias, o termo 'pesquisar' vem sendo associado pelos alunos à internet. Esta mudança de comportamento pode provocar algum impacto na frequência às bibliotecas?
Maria José – Quando pensamos na biblioteca e no acesso à internet, é curioso porque pesquisas sobre a presença de salas de leitura e salas de informática nas escolas dão conta de que hoje temos mais salas de informática conectadas à internet do que exatamente bibliotecas. Mas há um outro aspecto além desse. Quer dizer, quando pensamos, principalmente, na pesquisa escolar, estamos pensando na consulta a obras que, de algum modo, vão responder a algumas perguntas que estão relacionadas a temas que as crianças investigam a respeito dos diferentes currículos escolares. Esta pesquisa, hoje, não dá mais para ser pensada sem a internet. O que acontece é que, quando pesquisamos na internet, vamos para um site de busca, localizamos algumas possibilidades, e são exigidas algumas capacidades diferentes, porque precisamos, em primeiro lugar, credenciar a informação: onde está esta informação? Que qualidade ela tem? E, depois, devemos ser capazes de selecionar. Muitos destes textos estão organizados em Hyperlinks, o que nos possibilita fazer uma leitura, e sabe-se lá aonde vamos parar, de link em link. Então, isto requer também, de quem realiza a pesquisa, foco e objetividade. O que, às vezes, o estudante pode não ter. Ele está fazendo uma pesquisa de História, e clica em Roma, ele pode chegar ao time de futebol, e aí se deliciar com algo que não tem nada a ver, obviamente, com o objetivo da pesquisa que ele está realizando. O risco que se corre é fazer uma pesquisa exclusivamente com material ou suportes eletrônicos, sem esta leitura um pouco mais extensa, de aprofundamento, que nos permite identificar os aspectos que estão sendo tratados ali naquele texto, por aquele autor. Acho que deveríamos, de algum modo, estimular a combinação destes dois suportes. Quer dizer, fazer a pesquisa na internet, mas também dialogando com o suporte impresso, com os textos impressos.
Salto – Qual deve ser o papel do professor no processo de mediação de leitura nas bibliotecas?
Maria José – Esta questão da mediação, ela é fundamental. Porque, num primeiro momento, pensamos que precisamos assegurar a presença dos títulos, é claro, uma biblioteca precisa ter diversos títulos. Mas sabemos que só os títulos não garantem, de fato, a aproximação entre os leitores e esses objetos culturais. A figura do professor, ou do bibliotecário, desta pessoa que está ali nesse espaço, ela é essencial do ponto de vista de aproximar as obras de seus leitores. Num primeiro momento, emprestando a sua voz, porque podemos ter crianças que ainda não dominam o sistema de escrita alfabética. Dependem da voz do outro para entrarem no mundo da escrita e se apaixonarem pelo que leem. Quando a criança já está alfabetizada, há um tempo em que a capacidade de ela compreender é maior do que a possibilidade de ela decifrar. Então, também nesta hora, a voz do professor lendo essas obras de maior complexidade vai, ao mesmo tempo, abrindo os horizontes das crianças para conhecerem cada vez mais obras e autores, e também despertando o desejo de elas mesmas construírem a autonomia de que precisam para não dependerem mais dos olhos dos outros, e poderem ler sozinhas. Até chegar o momento em que vamos, de algum modo, acompanhando estes leitores que já vão começando a ter seu próprio gosto. Quais são os autores que eles preferem? Quais são os estilos que eles preferem? É esta oportunidade de abrir caminhos, de abrir possibilidades. E este mediador sendo um leitor apaixonado, e isto é o ideal, ele funciona como uma espécie de "madrinha", que aproxima seus "afilhados" da palavra escrita e do seu encantamento.
Salto – Qual o desafio da formação de leitores no Brasil?
Maria José – É um grande desafio se considerarmos que ainda lutamos contra o analfabetismo. Mas há o outro lado. Não basta simplesmente alfabetizar, se entendermos este processo apenas como “ser capaz de decifrar o que está escrito”. É preciso mais do que isso. É preciso tornar a escola um espaço onde haja a possibilidade de formar leitores efetivos, o que passa pela capacidade de compreender, de fato, o que o texto diz. Mas é necessário compreender isso identificando que o texto é um diálogo, portanto, que do outro lado tem alguém que diz coisas de alguém, de algum lugar, com algum ponto de vista. E fazer uma leitura crítica, identificar estes outros textos que se escondem nas entrelinhas, por trás das linhas. Esta formação é sofisticada e ela exige uma participação ativa da escola como um todo. Não só a participação do professor que atua na área de Língua Portuguesa, mas também do professor que atua nas outras áreas, e aí estou pensando, principalmente, na leitura dos gêneros escolares, gêneros acadêmicos, que permeia muito esta questão escolar. Todos, de algum modo, precisam estar comprometidos. Esta é uma tarefa da escola como um todo, e ela é fundamental. Porque é ela que, de alguma maneira, abre a possibilidade para um exercício pleno da cidadania, que certamente passa pela cultura escrita.
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